A máfia da blogosfera
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Jul 09
publicado por Tiago Moreira Ramalho, às 08:41link do post | comentar

Para além da eutanásia como acto voluntário, há ainda a eutanásia não voluntária e involuntária. Neste post irei expor o que penso sobre a eutanásia não voluntária.

Nesta questão vou ter de introduzir dois novos conceitos: eutanásia activa e eutanásia passiva. A primeira consiste em provocar a morte através de um mecanismo próprio para o efeito (por exemplo, injecção letal). A segunda consiste em «deixar morrer», por exemplo, parando-se o tratamento.

 

Ora, analisemos a eutanásia não voluntária activa. Em primeito lugar há que explicitar o que é a eutanásia não voluntária. Este tipo de eutanásia caracteriza-se por ser concretizado sem que haja uma qualquer opinião do doente (nem afirmativa, nem negativa) e é típica dos casos terminais em que não há testamento vital. Penso que este tipo de eutanásia é, sob todos os pontos de vista, imoral. É imoral pelo simples facto de que alguém, independentemente de quem seja, decide pelo doente sobre a sua vida ou morte. A família, o hospital, quem seja, decide matar (neste caso eu nem poderia utilizar a expressão que tanto odeio de «ajudar a morrer») um indivíduo sem que se saiba se é ou não esse o seu desejo. É um homicídio como qualquer outro, sem qualquer tipo de distinção possível. Há quem defenda este tipo de eutanásia por ser um «acto de compaixão». Normalmente, quando regemos as nossas acções pela simples emoção, acabamos a errar. Imaginemos, por absurdo, que uma pessoa, um Schopenhauer vindo do outro mundo, decide que viver é, por si só, uma fonte de sofrimento. Então, por acto de compaixão, decide matar todas as pessoas à sua volta. Afinal, o sentimento que o move é nobre: ele não quer que os outros sofram. No entanto, não se preocupa com o factor essencial: se os outros querem ou não sofrer. Embora mais moderado, é um sentimento deste tipo que domina quem defende a eutanásia não voluntária activa.

Analisemos agora a eutanásia não voluntária passiva. Neste tipo de eutanásia, a única coisa que acontece é que, sem que o doente se manifeste, deixa de ser tratado. Este tipo é, para mim, muito mais complexo de analisar. Em primeiro lugar, pensemos na questão em abstracto: será que uma qualquer pessoa tem o direito de exigir aos outros que a tratem? Ou melhor, será que é uma obrigação moral de um terceiro tomar conta e tratar um doente? Não. Não existe uma obrigação moral. Fazê-lo é, digamos assim, bom, mas não o fazer não é nenhuma imoralidade. No entanto, apesar de em abstracto este tipo de eutanásia parecer eticamente aceitável, quando o levamos ao concreto, ao nosso concreto, percebemos que não é tanto assim. Em primeiro lugar, imaginemos que o doente tem rendimentos - tem dinheiro seu. Numa situação destas, se o seu dinheiro não for utilizado com o seu tratamento, será herdado pela família. Cruamente: a família ganhará com a morte daquela pessoa. Isto, por si só, parece-me profundamente errado. É uma obrigação da família utilizar os rendimentos do doente para o tratar. Mas, pela complexidade, deixemos de lado esta vertente e vamos aquela que mais me interessa. Actualmente, na maioria dos países do mundo, existem sistemas de saúde e de segurança social. Resumidamente, todos os sistemas funcionam num molde de pagar agora para usufruir depois. É na saúde que o modelo mais se faz sentir. Enquanto são jovens e trabalham, os indivíduos pagam impostos, para que no futuro tenham a possibilidade de obter algum tipo de tratamento. Imaginemos então o António. O António tem 75 anos e trabalhou o tempo imposto pela lei, pagando sempre os seus impostos. Chegado aos 75 anos, vê-se com uma doença que o impede de falar ou manifestar qualquer tipo de vontade. Defendendo que não há perspectivas de tratamento, a família e o hospital ponderam cessar o tratamento. Será que isto é aceitável? Não. Não é aceitável pelo simples facto de que não cabe nem à família nem ao hospital decidir sobre uma coisa que já está decidida. O António durante anos a fio contribuiu para um sistema que lhe prometia tratamento, aceitando, implicitamente, esse tratamento caso fosse necessário. O tratamento está pago e, como tal, o Estado (a outra parte do acordo) vê-se obrigado a cumprir com aquilo que prometeu: tratá-lo. É inaceitável, portanto, que seja a família ou o hospital, que, no caso, é uma dependência de um dos outorgantes (o Estado) a decidir rasgar um acordo feito pelo António e que o António sempre cumpriu.

Moral da história: a eutanásia não voluntária passiva (estes nomes são enormes) é eticamente aceitável se e só se o doente não tiver contribuido para um sistema de segurança social, situação em que o Estado está moralmente obrigado a cumprir a sua parte.
 


"será que é uma obrigação moral de um terceiro tomar conta e tratar um doente? Não. Não existe uma obrigação moral"

Vamos recuar um pedacinho, e fazer um exercício. O Tiago está num sítio ermo a fazer uma caminhada, e cruza-se com outro caminhante que, mesmo quando ia a passar por si, coloca mal um pé e faz uma fractura exposta. O Tiago segue o seu caminho, indiferente. Imoral? Naaa..... Afinal, nada o obriga.

Quanto ao argumento da segurança social, já demos. Os seus argumentos baseados numa lógica comercial são completamente amorais, e portanto desumanos.

A sua conclusão de que alguém que não tenha contribuído para o sistema pode ser sujeito à "eutanásia involuntária passiva", porque não pagou para ser tratado, implica que ele nem devia ter sido tratado, para começar.

Por isso acho que fazer a discussão da eutanásia neste "enquadramento" é completamente estéril.
Ah, e as emoções não são um impedimento à racionalidade. Pelo contrário.
l.rodrigues a 9 de Julho de 2009 às 09:54

Se é estéril, deixe lá. Há-de haver quem se interesse.

O tema interessa-me e por isso respondi. Contestar o "framing" era uma proposta para repensar os termos do debate.

A questão da Eutanásia, como a do Aborto e outras, é eminentemente uma questão moral. Tentar discuti-la, retirando isso da equação, em termos supostamente racionais e amorais e economicistas é, para ser simpático, muito redutor.

Agora, pelos vistos, o Tiago recusa-se a dar um passo atrás, e discutir os seus pressupostos.
Suponho que o caminhante da perna partida estava mesmo condenado à sua sorte...

l.rodrigues a 9 de Julho de 2009 às 10:36

"as emoções não são um impedimento à racionalidade. Pelo contrário."

Aqui está um tema de discussão bastante interessante. Provavelmente será o tema do meu próximo post.
Stran a 9 de Julho de 2009 às 10:32

Mas, já agora, deixe-me responder-lhe aos seus comentários.

Em primeiro lugar a questão do «coitadinho» - que já que quer colocar assim a discussão, eu compactuo.
Quando achamos que alguma coisa é imoral, mais que esbracejar gritando, temos de o provar. Cometer um acto imoral, na minha perspectiva, cinge-se a fazer mal aos outros. Isto - fazer mal - é muito diferente de não fazer bem. Eu não estou obrigado a fazer bem, apenas estou obrigado a não fazer mal.
Portanto, caro Luís, continuar a andar não seria imortal. Imoral seria, no máximo, ir lá aleijar ainda mais o homem.

O Luís pode achar que tudo isto é humanidade e tal, mas isso não lhe permite vir aqui dizer o que sou ou o que não sou. Não me conhece assim tão bem. Melhor: não me conhece de todo. Portanto, comentáriozinhos como aquele que fez são dispensáveis porque penso que nunca o ofendi.

Eu não digo que alguém que não contribua para o sistema pode ser sujeito à eutanásia. O que eu digo, e faça-me o favor de ler as coisas como deve ser e não vir aqui mandar dois ou três bitaites depois de uma leitura apressada, foi que caso não haja um sistema como o nosso a eutanásia não voluntária passiva (que é muito diferente de involuntária) é aceitável. Num sistema como o nosso, não - pague-se ou não, porque o sistema ainda não veda o acesso a quem foge aos impostos.

O que o Luís acha ou deixa de achar é consigo. Eu apresento argumentos, se lhe apetecer apresente os seus, ou então nem o faça.

Cansadinho da implicância...

O Tiago definitivamente tem a pele fina.
Vê ataques pessoais onde eles não existem, e escolhe ignorar os meus argumentos, afirmando que não os tive.

A "implicância" fica por aqui. Até há pouco tempo via-o como um jovem interessado e inteligente que procurava debater e progredir intelectualmente.
Dou-lhe os meus parabéns! Pelos vistos, já chegou ao fim do seu progresso.

Pois Luís, é que é bonito medir as palavras. O assunto também me interessa muito, mas não me interessa de todo que venha para aqui chamar-me desumano apenas porque vejo o problema de uma forma diferente da do Luís.

Não tenho aqui escrito que a eutanásia é um acto de compaixão, e que é por causa dos sofrimentos e afins, que a maioria de nós já passou, apenas porque não acho que seja dessa forma que tem de se avaliar a questão. Como discordo da perspectiva da «saúde pública» como se debateu o problema do aborto. Foge-se às questões essenciais e nem se faz um esoforço por perceber por que raio é que alguém há-de estar a analisar as coisas desta forma. É isso que me faz confusão.

Para além disso, respondi-lhe a todos os pontos do seu comentário, sem excepção.

Chamei desumanos, porque amorais, aos argumentos baseados em lógicas comerciais, não a si. E, como tal, algo que me faz questionar a sua validade (dos argumentos) numa questão eminentemente moral.

Veja bem: eu não tenho dúvidas de que, sendo o Tiago a pessoa decente que acredito que seja, ajudasse o hipotético caminhante em apuros.

O que questiono é que as razões porque o faria sejam irrelevantes, apenas porque "racionalmente" não tem nenhuma obrigação para com o individuo.

Aqui há uns tempos ouvi uma coisa sobre a racionalidade económica, conclusão dos estudos na área da economia comportamental: só os economistas e os psicopatas agem como prescrito pela economia neo-clássica.
As pessoas "normais" agem apoiadas em emoções, de compaixão, de gratidão, de honra, de vingança, de nojo, de desejo, de esperança, de confiança, etc etc etc. É isso que tempera e informa a verdadeira racionalidade.
São essas pessoas reais e socialmente funcionais que devem servir de base a qualquer modelo normativo (politico, social ou económico).

Para mim a Eutanásia só tem um propósito, obviar sofrimento desnecessário. Para mim, portanto, a discussão deve centrar-se na nossa capacidade de discernir isso mesmo. Se estamos em condições ou não de decidir o que é um caso sem esperança ou não, quando devemos desistir ou não.

Muito mais importante do que considerações sobre quem paga o quê, interessa-me, por exemplo, uma discussão sobre os limites da consciência, da identidade e da autonomia do individuo, nos casos limite em que ele clinicamente já está para lá da capacidade de recuperar, de exprimir vontade, emoções, consciência, etc etc.

Eu não irei medir as minhas palavras contra ideias de que discordo. Se sou contra, digo que sou e porquê. E se achar que isso merece um enfase especial ele será acrescentado.

Acredite que nunca lhe fiz um ataque pessoal.
Não é do meu estilo atacar as pessoas de discordo. Quando a coisa fica pessoal, simplesmente afasto-me.

Mas, Luís, é isso que eu faço nos dois textos: estou a explorar os limites éticos à eutanásia. Mas, como é óbvio, tenho de o fazer «filosoficamente», de forma fria e lógica. Se eu estivesse em campanha pela eutanásia, provavelmente não o faria, mas não estou: estou a analisar um problema concreto com os mecanismos que possuo: a razão.
Não entendo como é que pode encontrar nos meus textos lógicas comerciais. No primeiro digo que a eutanásia voluntária é eticamente aceitável. No segundo digo que a eutanásia não voluntária activa não é por achar que é um homocídio e que a passiva seria aceitável se não tivessemos este modelo de organização social. Não há aqui lógicas economicistas ou comerciais, há discussão ética pura e dura. (se é boa ou não, isso já não me cabe a mim avaliar).

"As pessoas "normais" agem apoiadas em emoções, de compaixão, de gratidão, de honra, de vingança, de nojo, de desejo, de esperança, de confiança, etc etc etc. É isso que tempera e informa a verdadeira racionalidade."

Eu iria mais longe. Sem emoções não existe racionalidade!
Stran a 9 de Julho de 2009 às 12:01

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