86 QUERIDO DIÁRIO - FOLHA SOLTA
Para o Tiago Moreira Ramalho, porque penso que procura verdade dentro de palavras, vida. |
Dizer verdade. Sem artigo que a defina. Olhar nos olhos, dizer verdade, sempre iniciais faça-se!, mais escuros de barro que luminosos de Deus. Ela, luz, apenas a humidade unificadora: terra religada à água. Terra verdade de humildes que somos, ainda que o nosso exacto tamanho, água verdade, seja o que só amando se contempla. Barro. Agarrar com muita força sabendo muito bem da impotência dos braços, da fragilidade da ponta dos dedos, nada de nada entre eles, mesmo assim agarrar como para sobreviver. Na ponta dos dedos morremos todos. Sabendo muito bem que nada: morremos sozinhos tantas vezes por dia. Olhar nos olhos e dizer, ao longo da vida quantas vezes, quantas, sozinhos, a morrer, a provar antes a morte de depois, pequenos ensaios para, que nojo!, morrer bem! A verdade ao espelho seja ele qual for, quem, espelho tu, espelho eu, a rua cheia de eus tus uns para os outros, não vejas, não vejas, sem ser aos gritos, com dignidade, não podes chorar da dignidade de não gritarem, para que, que nojo!, morrer bem quando a morte. Tomar veneno em pequeníssimas gotas: verdade. Na circulação do sangue, verdade, subida aos olhos, a conduzir, por aqui sim por aqui não, verdade carne na polpa dos gestos, até os ouvidos distinguirem de olhos fechados o oco do cheio; a parede oca, do quarto emparedado, da parede cega dos olhos vazados que não podem ver. E ficar sentado na esplanada pequena sobre o passeio sujo do café de bairro sujo, o cesto das compras, revistas poemas bifes queijo fresco alface laranjas de bairro, o cheiro do talho, o do suor sujo e o do suor limpo: suor igual azedo. Parece que não tenho medo de nada porque sei que já morri muitas vezes, que tu, tu e tu, eus de mim outros, do tamanho exacto do amor, também muitas vezes. Seguro-te na mão, parece que. Como seguro, quando seguro, parece que. Porque não guardo o amor para o silêncio, entrego na polpa dos gestos, desaprendo para dizer a verdade: nada me suscita dúvidas, duvido, simplesmente. Porque eu dispo as palavras corpo das palavras roupa. Só por dentro, só quando cheias, digo amo, quero, sou, és. Desaprendo tudo o que for preciso para nos salvar sabendo que morreremos. Assim parece que. Mas tenho medo de morrer aos gritos.