Talvez não fui suficientemente claro quando fiz a analogia entre trabalho precário e escravatura.
Eu sei que são diferente. Que no caso dos escravos, não só a pessoa era mercadoria como também a sua descêndência. Mas:
- tanto num como noutro existe uma obrigatoriedade de aceitar aquela condição (uma de escravo outra de trabalhar com uma remuneração identica ou menor da que de um escravo), uma derivava da lei dos homens, a outra da lei de sobrevivência.
- ambas fazem com que o ser humano viva em condições indignas (e é isso que o SMN faz, estabelecer um minimo de dignidade humana, e diria que o problema é que peca por escasso).
"O problema desta temática não é o facto de não se tratar de uma escolha livre, porque se trata."
Pois julgo que está aqui a diferença de raciocinio entre nós os dois. A escolha não é livre. E falo isto com a minha experiência de vida, do que vi acontecer (podes não considerar válida).
Mas fiquemos pela parte teorica: dizes que a escolha é livre. No entanto quando te perguntei que em que condições (a ti) te levaria a escolher uma remuneração abaixo do salário minimo nacional, não me soubeste responder. O que te leva a ter a certeza que a escolha é livre?
E se a escolha é livre podemos partir do pressuposto que todos os trabalhadores poderam escolher ordenados que os permitem viver acima do limiar da pobreza, correcto?
Se isso é verdade (e partimos do pressuposto que qualquer trabalhador não quer ser pobre) qualquer trabalhador escolheria um ordenado que fosse superior ao ordenado minimo nacional, afinal ele tinha essa escolha, correcto?
Se assim é, e repito a escolha é livre, porque é que é necessário abolir o SMN? Numa situação em que a escolha é livre ninguém aceitaria viver abaixo do limiar da pobreza, logo mesmo agora, qualquer salário deveria ser acima do salário minimo nacional. Porque é que não é assim?
Julgo que defenderias que é precisamente pelo facto de o preço ser estabelecido em mercado. (embora para tal terias que provar que o meu raciocinio anterior está errado, o que não deve ser dificil).
Eu defendo que simplesmente, neste caso a escolha não é livre. Aliás para mim quem aceita valores abaixo do salário minimo fá-lo-ia porque não tem alternativa, ou seja, não tem escolha.
"O problema desta temática é que apenas admitimos como emprego o trabalho por conta de outrem"
Eu por acaso ainda não quis abordar esta questão. Mas julgo para a temática em questão não seria relevante. Só aflorei um pouco, quando falei nos recibos verdes. Mas aprofundando um pouco, se o que tu dizes é verdade (mercado de trabalho mais fléxivel dará melhores rendimentos), porque é que os recibos verdes (mais fléxivel que isso é impossível) recebem menos do que os contratados. Afinal a flexibilidade é algo que deveria ser remunerada, não achas? Logo por estas teorias estes deveriam ser mais bem pagos que os outros, no entanto isso não acontece, porquê?
"E qualquer pessoa pode adquirir competências, mais não seja através do trabalho."
Outro erro de abordagem a meu ver. O ser humano não é um programa de computador. Na minha modesta opinião ele é ao mesmo tempo um ser activo e um ser circunstancial. Isto é, embora ele tenha a capacidade de moldar o seu destino, a sua acção também totalmente dependente da sua circunstância (contexto) actual e passado. Julgo que é o maior problema das duas visões mais populares em economia (neoclassicos vs marxistas/socialistas) só vêem metade da questão.
Isto tudo para dizer que nem todas as pessoas podem adquirir competências. Gostaria de viver nesse mundo, mas ainda não é o mundo real.
Stran a 20 de Abril de 2009 às 01:29
Não te vou responder ponto por ponto, vou tentar sintetizar.
Eu tenho plena noção que, se abolíssemos o salário mínimo agora, de uma assentada, iria haver muitas pessoas numa situação muito má. O meu mencheviquismo aconselha-me a não propor uma abolição abrupta, mas um contrabalanço, tal como escrevi nos outros textos, havendo primeiro maior liberdade para criação de empresas e só depois uma redução gradual das regalias dos trabalhadores.
Quando em falo em escolha livre não é no sentido de todos os trabalhadores poderem escolher o seu ordenado. Falo em liberdade no sentido de poder optar por uma de três hipóteses: aceitar a proposta, não aceitar a proposta e ficar no desemprego ou não aceitar a proposta e criar o seu emprego.
Os recibos verdes em Portugal "não contam", funcionam como tramóias. É muito complexo explicar porque é que acho que funcionam como tal, parte da explicação está nos outros três textos e no início do comentário: estamos a meter a carroça à frente dos bois.
Quanto ao teu comentário final. Eu subscrevo-o, mas não retiro a mesma conclusão. É verdade que somos dependentes do nosso contexto, no entanto, contexto nenhum nos torna irracionais, isto é, alguma competência nós somos capazes de adquirir em algum momento. E, mesmo que num mundo paralelo isso pudesse existir, não seria fixando um preço mínimo para o trabalho que a coisa se resolveria.
Ok não entendi isso. Continuo a não concordar mas parece-me bem mais razoável.
Quanto à questão das escolhas:
"aceitar a proposta, não aceitar a proposta e ficar no desemprego ou não aceitar a proposta e criar o seu emprego."
Imagina o contexto actual (e imagina que já é fácil criar um empresa), nem todos conseguem arranjar trabalho o que aconteceria à pessoa nesse cenário? Que opção iria tomar?
E como sabes não basta abrir uma empresa para ter clientes, imagina que para ter clientes ele teria de não incluir no seu preço a margem o ofertante de emprego inclui no seu preço, ficamos já só com 2 opções, e imaginemos que para as capacidades que ele tem só lhe dão aquele valor, então ele deixou de ter opção senão aceitar o valor que lhe dão. Como evitar que isto aconteça?
"contexto nenhum nos torna irracionais" sim, mas o tempo não é finito, e existem muitos "contextos" que te roubam tempo, assim como bastantes que te roubam racionalidade.
"não seria fixando um preço mínimo para o trabalho que a coisa se resolveria."
Não, mas dá opção a quem de outra forma não tem opção. Evita uma situação de possivel degradação da dignidade humana.
E julgo que esse é o justificativo para a sua existência. Encontra-me outra forma de isso acontecer e posso concordar contigo. (por exemplo a atribuição do subsidio a todos os cidadãos portugueses, imaginando que existia dinheiro para isso)
Stran a 20 de Abril de 2009 às 20:05
«Imagina o contexto actual (e imagina que já é fácil criar um empresa), nem todos conseguem arranjar trabalho o que aconteceria à pessoa nesse cenário? Que opção iria tomar?»
Não posso imaginar uma situação diferente e fazer a análise como se ela não fosse diferente.
É óbvio que não vou abrir uma empresa de cortinas rasgadas, ou de uma qualquer coisa que não tenha procura. Isso parte da capacidade do empreendedor.
A questão da dignidade, respondo copiando uma parte da resposta que fiz ao Carlos Santos (já agora, e não me querendo intrometer, li o elogio que lhe fizeste e se fosse a ti ia dar uma vista de olhos a algumas mensagens antigas, de há três semanas, por exemplo, para veres o tom em que ele se refere a quem dele discorda):
«há uma série de mecanismos de solidariedade social, e eu defendo que seja voluntária, o que não é o mesmo que ser contra a sua existência, que permitem ao indivíduo viver com dignidade, sem que seja imputada ao empregador toda a responsabilidade pelo facto de o mundo ser um lugar estranho.»
Porque esta é uma parte da questão. Ao fixarmos um salário mínimo a bem da dignidade, estamos a imputar ao empregador a responsabilidade da má situação do empregado...
Gostava de começar pelo àparte. Quanto ao Carlos Santos, as palavras que dirigi são o que sinto e o que tenho visto. Não me intrometo em discussões alheias, mas já o vi discutir com pessoas que não partilham da opinião dele de uma forma totalmente correcta, aliás como afirmei no meu artigo (inclusivé as minhas primeiras opiniões até eram contrárias às dele) e que é identico à forma como aqui nós os dois estamos a debater esta questão.
Tomei conhecimento do blogue dele na altura da polémica com os insurgentes e tenho de confessar que os moldes como gozaram com o trabalho dele foi um pouco "infeliz", mas presumo que são inimizades antigas.
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Quanto à questão da resposta:
deixaste-me com a pulga atrás da orelha:
- que mecanismos te referes concretamente?
- o que queres dizer com voluntária?
P.S. desculpa o "pequeno-grande" àparte, tenho de aprender a ser menos palavroso.
Stran a 20 de Abril de 2009 às 23:40
Basta leres o comentário que aqui me fez para veres ao que desce. Para além disso, em relação ao Insurgente, posso dizer-te que foi ele quem começou. Mas é coisa que não nos diz respeito.
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Instituições de solidariedade social privadas. Tens a Santa Casa da Misericórdia que é muito mais eficiente e efectiva que qualquer governo tem sido. Se há alguém verdadeiramente com problemas, a Santa Casa acaba por lá chegar. Nas aldeias isto salta à vista. Mas existem outras. Basicamente, defendo que uns não devem impor aos outros uma obrigatoriedade de solidariedade. Ou seja: eu tenho todo o direito a ser solidário e a dar quanto quero a quem precisa, mas não tenho o direito a armar-me em Robin dos Bosques.
Bem começo pelo fim:
"...mas não tenho o direito a armar-me em Robin dos Bosques..."
Não discutindo o papel redistributivo que o Estado (pois sei que não temos as mesmas opiniões) pode assumir:
Não acha que todos os contribuintes devem contribuir para o financiamento do Estado (isto é independente de qual a acção do Estado) com esforço idêntico?
Quanto às "Instituições de solidariedade social privadas", existem dois pontos que gostava de escrever:
1) gostava que de saber se tem acesso a esses estudos comparativos. A verdade é que muitas vezes estas instituições não têm a visibilidade e não são alvo de criticas como o Estado é. No entanto não é por isso que não têm motivos para serem criticadas. Por exemplo acha legitimo que a Santa Casa, que é financiada por todos nós, detenha um espaço em plena zona nobre da expo e que nada tem a ver com a sua actividade? Ou que a mesma Santa Casa coloca idosos em lares de idosos que não têm licença para tal?
2) Acha que uma pessoa deve estar dependente do acaso para receber ajuda?
Existem também outros dois motivos pelo qual eu acho que o Estado deve promover a acção social:
a) Investimento - A acção social implica em muitos casos investimento em infraestruturas e redes, se o Estado não tiver isto implementado poderão acontecer casos em que os privados não possam providenciar essa ajuda e o país fica sem nenhuma estrutura.
b) Liberdade - normalmente não se discute este ponto quando se fala da acção social. O apoio social estabelece uma relação de confiança entre o ajudado e a instituição que ajuda, desta forma ela é muitas vezes instrumentalizada para que essa instituição consiga angariar apoios para fomentar determinada moral e angariar apoios politicos. Um bom exemplo desta situação é os movimentos radicais islamicos (hamas, hezbollah, etc...). O apoio que recebem das populações deriva de um sistema de apoio social muito forte. O que acontece nesses países é que ou por terem um estado fraco ou por opção o Estado é substituido por essas organizações. Outro exemplo é a Turquia, onde durante a decada de 90 a inicios deste seculo existiu uma negligência da acção social do Estado que foi culmatada por associações religiosas. A consequencia foi que o partido Islamico ganhou poder, e neste momento a Turquia está à beira de se transformar numa ditadura islamica (vergonhasamente a imprensa europeia não tem revelado estes ultimos acontecimentos). Assim, normalmente, uma consequência do abandono do Estado da sua acção social tem como consequência uma limitação da nossa liberdade a médio/longo prazo.
Como é obvio existem outros motivos pelo qual eu defendo a acção social por parte do Estado, no entanto este comentário já vai longo pelo que fica para uma outra altura.
Stran a 21 de Abril de 2009 às 16:42
A primeira pergunta tem uma bela rasteira. Eu defendo que todos devíamos contribuir com o mesmo para o financiamento do Estado. Mas isto tem mais por trás, é complicado expor toda uma teoria que me levaria bastantes folhas a explicar aqui.
Não tenho acesso a estudos comparativos, não. A análise que faço é puramente empirica: do que vejo. E vejo que o apoio do Estado é um apoio cego, ou seja, não são feitas análises caso a caso, não se conhecem as pessoas. Por outro lado, as instituições privadas nunca fariam isto, nunca "mandariam dinheiro fora", nunca permitiriam que dinheiro de ajuda fosse para gente que não precisa, ou que se deixasse gente que precisa mais de fora apenas por "não querer saber".
Um princípio económico básico: se há necessidade de x, x vai aparecer mais cedo que tarde. Logo a questão das infra-estruturas, para mim, não se coloca.
Quanto à pertinente questão que colocas, respondo-te com uma outra pergunta: quando os partidos no governo anunciam grandes pacotes de apoio às famílias ou quando, na oposição, clamam por mais apoios, não estarão a comprar votos também?
O pior é que ao fazê-lo, vão meter gente que não quer ser metida na "conversa" e numa instituição privada só entra quem quer.
Stran, fugindo a estas questões de pormenor, a questão essencial é: em que medida é que por eu estar mal, existe alguém com a obrigação moral de me ajudar. Esta é a verdadeira questão que nunca é colocada.
"...contribuir com o mesmo para o financiamento do Estado"
O que queres dizer com o "mesmo"? O mesmo valor? a mesma taxa? ou o mesmo esforço?
"Por outro lado, as instituições privadas nunca fariam isto, nunca "mandariam dinheiro fora"..."
Acabei-te de dar um exemplo real de como a Santa Casa "mandou dinheiro fora. E se quiseres posso tentar encontrar mais exemplos.
Nisto não partilho a tua visão, para mim nem o Estado é só porcaria nem os privados são excelentes. Ambas são organizações humanas que tem defeitos e virtudes. Partir a priori que uma é boa e outra é má é apenas um preconceito. O trabalho da Segurança Social também é excelente em alguns dominios, e honestamente julgo que as pessoas cometem muitas injustiças a criticar o Estado da forma como criticam.
"Um princípio económico básico: se há necessidade de x, x vai aparecer mais cedo que tarde. Logo a questão das infra-estruturas, para mim, não se coloca."
Mas reconheces um espaço temporal entre o surgimento da necissidade e o aparecimento das infraestruturas. A minha questão é: não te importas de correr o risco de pessoas morrerem nesse periodo de tempo?
"quando os partidos no governo anunciam grandes pacotes de apoio às famílias ou quando, na oposição, clamam por mais apoios, não estarão a comprar votos também?"
Sim e não. A priori não dá para determinar se está ou não a comprar (da mesma forma que não se sabe a priori o interesse de uma instituição particular em ajudar). A diferença é que num temos poder de acção e de controlo (existe debate e participação), podemos influenciar a sua acção, no caso das instituições privadas não, e isso faz toda a diferença.
"O pior é que ao fazê-lo, vão meter gente que não quer ser metida na "conversa" e numa instituição privada só entra quem quer"
Bem isto leva-nos para a vida em democracia, a verdade é que o mesmo poder é concedido ao estado por causa de uma guerra e não vejo ninguém falar sobre esse assunto.
"em que medida é que por eu estar mal, existe alguém com a obrigação moral de me ajudar. Esta é a verdadeira questão que nunca é colocada."
Respondendo directamente à questão: é por existir Estado que tu não tens a "obrigação moral" de ajudar. Por estranho que pareça por esta questão estar delegada no Estado é que existe uma sociedade com menos controlo social, ou seja mais livre. Posso explicar isto mais tarde pois julgo que vai demorar um pouco a sintetizar a ideia (mas se tiveres interessado diz, e como exemplo pensa nos suburbios das cidades americanas).
No entanto eu vejo esta questão dividida em duas partes:
- que papel deve ter o Estado ou dito de outra forma, que tipo de sociedade queremos ter;
- como financiar esse modelo
E em ambas a decisão deve ser democrática, não achas?
Stran a 21 de Abril de 2009 às 18:57