Estou de férias na Beira e, por um infortúnio, tive de ir às urgências. Um edifício pequeno, velho e sombrio, cheio de gente idosa à espera da enfermeira para levar uma pica ou para fazer um penso. Faço-me acompanhar pelo Rio das Flores (a serem iguais às de Almada, estas "urgências" iriam tomar-me algumas horas) do qual nem duas páginas leio. "Senhor Tiago Ramalho", era o toque de entrada para a consulta. Entrei. "Gosta de Miguel Sousa Tavares", perguntou o médico ao ver o imenso volume pousado em cima da mesa. Respondi que era o primeiro que lia do autor, mas que estava a gostar. Logo me diz que nunca tinha lido o título que me acompanhava mas que tinha gostado bastante do Equador. Conversa puxa conversa (não havia mais pessoas para serem atendidas, o que permitia alguma folga de tempo) e vamos falando de livros. O simpático e aparentemente culto senhor aconselha-me dois livros sobre o nazismo que, segundo ele, eram relatos muito bons, sem as manipulações e inverdades da televisão e dos jornais: A Mãe e 25ª Hora, nunca tinha ouvido falar. Quando chegamos ao Saramago, cuja escrita tanto aprecio, ele refere-se ao Nobel como "o meu amigo Saramago". Amizade que lhe valera uma primeira edição do Memorial do Convento autografada pelo mesmo punho que me autografou em Junho o Ensaio Sobre a Cegueira. Se já estava admirado por estar a falar com um beirão amigo de um ribatejano "exilado" em Espanha, mais admirado fiquei quando esse beirão me disse que o próprio Saramago havia passado ali, em Pinhel, uma semana há pouco tempo atrás.
No caminho de regresso a casa dei por mim a pensar como deve ser engraçado ser amigo íntimo de um grande intelectual, de uma figura importante na cultura a nível mundial, seja um escritor, um pintor ou um cineasta. E o caminho de regresso, que curto não era, ainda me deu tempo para pensar no bom que é haver ainda gente culta, no sentido dado ao termo antigamente, gente cujo conhecimento não é restringido a uma área do saber como a medicina ou a economia, gente cuja curiosidade se alarga a vários temas e ramos do saber, gente com quem dá para ter uma conversa com substância sobre o que for, gente que vou tentando imitar.