1. A filosofia aborda a função simbólica da arte integrada na sua tarefa interpretativa (hermenêutica), num dos períodos do pensamento mais marcados pelo simbolismo e misticismo, referimo-nos ao romantismo alemão, como movimento civilizacional que formou as condições para o aparecimento da teoria nietzschiana.
Centramo-nos no conceito de símbolo tal como o jovem Nietzsche o tratou entre os anos de 1870 a 1873. Onde a transposição é apresentada como a categoria fundamental: “
O símbolo é a transposição duma coisa para uma esfera completamente diferente”
[3] indicando o transporte e a mudança de uma imagem e de um significado para outro âmbito. Sendo apresentado como um elemento essencial da comunicação que relaciona as diferentes grandezas em jogo na arte.
Se bem que, já desde Aristóteles a metáfora seja considerada como a transposição, que permite traduzir os elementos de realidades diferentes. A metáfora identifica ainda a mudança que os latinos classificam como ‘
translatio’, o trânsito semântico, isto é, a alteração de significado. Em Nietzsche, o símbolo e a metáfora equivalem-se parcialmente enquanto processos artísticos, que estabelecem relações inventivas na criação da obra de arte.
Estando o símbolo próximo dos fluxos da vida, ele converte a música na categoria mais apropriada para retratar a multiplicidade da existência enquanto mudança e metamorfose. Por isso, o símbolo não é redurtivel à metáfora, pois a música tem um papel essencial na metafísica estética sem se subordinar à dinâmica das imagens.
Nietzsche trata a imaginação como a faculdade que estabelece a unidade entre as diferentes imagens através da invenção de suposições audaciosas. Diz a este respeito em
A Visão Dionisiaca do Mundo: “[
a fantasia]
dá-lhe asas, um poder estranho e ilógico”. Assim estabelece comparações que transpõem os significados para domínios desconhecidos, como acontece com o uso da máscara, a qual em simultâneo revela e esconde a força da vontade, transfigurando e trocando uma identidade por outra.
Portanto, o símbolo a partir da acção transpositiva e transfigurativa une numa expressão os elementos sensíveis e metafísicos. Entende a mutação da vontade que se esconde e se manifesta na dinâmica natural da força e potência da arte, permitindo entender as suas próprias metamorfoses. Enfim, através da relação dialéctica entre a força e o significado (inerentes ao símbolo) podemos compreender as forças da natureza e o modo como estas transitam para a arte.
2. Ao investigar a origem do símbolo na força matricial que o sustenta, Nietzsche detecta que existe um fundo inconsciente. No plano da construção simbólica, o inconsciente está presente como um fundo orgânico ‘
sapiencial’, que é necessário tornar consciente. Apesar disso, não existe para ele uma ponte segura para a transposição deste elemento para aquele. Pois o nível inconsciente não se deixa submeter aos princípios formais da lógica, que se apresetam como a panaceia onde se esconde a fragilidade do racionalismo abstracto.
Em contrapartida, Nietzsche considera que os impulsos cegos do organismo são transpostos de modo simbólico, primeiramente para as vivências sentimentais e depois para as actividades culturais; ou seja, o inconsciente é a fonte energética do processo simbólico. Identifica ele nessa potência subterrânea uma torrente que atravessa os sentimentos, que se constituem como referenciais semânticos com a capacidade de produzirem novos símbolos. Isto deve-se ao facto do sentimento traduzir o sentido interno, que percebe e orienta a intenção do instinto. Na perspectiva do nosso filósofo, todo este processo é indirectamente controlado pela vontade.
E, como se sabe, a categoria da vontade no jovem Nietzsche é claramente influenciada pela filosofia de Schopenhauer. Com efeito, ambos os filósofos concebem o ser e o mundo como entidades dinâmicas, pensando que o mundo é uma representação e manifestação da vontade.
Implicitamente, a noção de génio aparece aqui como a entidade “
subjectiva” que sente a força da vontade a pensar com ele acerca da produção das novas formas; o que significa que o génio é o culminar dessa orgânica da vontade, procurando indirectamente dominar a ‘Força da Vida’, para a partir desse fundo inconsciente poder criar as formas simbólicas, as formas míticas, as formas poéticas.
3. No desenvolvimento de tal aspecto, o mito e a arte desempenham uma função simbólica acrescida, na medida em que Nietzsche os utiliza, altera e recria como narrativas e ilustrações do seu próprio modo de pensar. Logo, ao entender o que é essencial no pensamento deste filósofo, convertemo-nos em intérpretes dos seus mitos e dos respectivos símbolos artísticos.
No entanto, se já vimos como nascem os símbolos, agora convém observar como é que eles desaparecem. No prosseguimento dos românticos, o jovem Nietzsche critica a ausência das crenças míticas no que se refere à modernidade, revelando a decadência que é provocada pela luminosidade racional, a qual tudo quer explicar e desvendar, banindo o espaço da incerteza, da dúvida e do espanto. O mesmo é dizer que, o ‘Iluminismo’ [‘
Aufklärung’] ao projectar uma compreensão das crenças, dos sentimentos e dos símbolos acaba por os destruir.
Na perspectiva de Nietzsche, o desaparecimento dos símbolos míticos leva à uniformização mental e à falência da civilização moderna que “
perdeu a pátria mítica”,
[4] por se ter desenraizado culturalmente das forças criadoras da vida.
Ao diagnosticar este ambiente de decadência, Nietzsche considera, no entanto, a possibilidade duma regeneração por meio do retorno nostálgico ao mítico, a partir de um diálogo vivo entre a música e a filosofia. Tudo isto porque a música é a área cultural em que os símbolos ainda vivem, constituindo-se assim como o centro regenerador da criação e do pensamento.
Aqui recorre-se à inspiração de Wagner, na medida em que este ousou pensar por meio de acontecimentos visíveis e sensíveis, através de um acentuado envolvimento mítico. Nietzsche considera que em
Tristão e Isolda e na trilogia do
Anel dos Nibelungos encontramos um género de narrativa dramática que desenvolve as ideias metafísicas sob a forma simbólica. A música constitui desta forma a nova inteligibilidade do pensamento sem negar a sensibilidade, permitindo reflectir sobre a arte a partir dela mesma. Pensa Nietzsche que a música de Wagner é um mote para a reflexão, possibilitando uma compreensão metafísica mais elevada do que qualquer filosofia já conseguiu.
Como corolário disto, Nietzsche considera que a música é o espírito que origina a obra de arte trágica, participando na génese do coro (que é o elemento da união mítica entre a música e a palavra). Deste modo, o mito é o elemento comum que permite estabelecer a mediação entre a tragédia grega e o drama musical wagneriano.
Posto isto, pretende Nietzsche uma fundamentação mais recuada, procurando na Grécia Arcaica as condições ideais da formação dos mitos da tragédia; é neste sentido que, propomos esclarecer sumariamente um dos mitos a que Nietzsche mais recorre. Trata-se com efeito da história de Édipo, que é o símbolo dionisíaco do homem trágico, encontrando-se em luta e sofrimento face à interpretação do seu destino. Essa figura mítica é concebida por Nietzsche de modo ambivalente, considerando que Édipo é uma máscara do sofrimento dionisíaco, mas também é o “
símbolo da ciência” por interpretar os mistérios mais profundos da natureza humana.
Notámos que, Édipo escuta vatícinios horríveis acerca de si próprio; no entanto, à medida que se vai descobrindo, também o seu destino irracional é realizado. Este herói interpretou o enigma da
Esfinge, e, ao revelar-lhe o segredo desmistificou-a, matando-a com as armas da razão. No fundo, Édipo representa a união do pensamento mítico com a emergência de uma reflexão simbólica e filosófica, por se apresentar como o intérprete e decifrador dos enigmas. Todavia, apenas aquele que está na posse da ‘ciência’ da interpretação dos símbolos pode decifrar o enigma com verdade. Neste caso, a ‘adivinha’ é apresentada pela Esfinge, que é a figura por excelência da razão enigmática.
4. Em analogia com esta concepção, Nietzsche apresenta Apolo como o símbolo da ilusão, do sonho e também da adivinhação. Torna-se deste modo evidente que Apolo se identifica com Édipo, por este herói e aquele deus partilharem uma faculdade oculta. Já na mitologia grega se relatava que Apolo era o deus do oráculo, que detinha os poderes de adivinhar o futuro. Com efeito, ele representava uma modalidade da razão que tinha por finalidade decifrar os mistérios. Ao investigar este aspecto, Giorgio Colli destacou que: “
o enigma indica a origem da razão”,
[5] a qual é mais misteriosa do que a racionalidade filosófica desejaria, uma vez que vem marcada por um conflito interno quase comparável ao da loucura.
Em contraposição a Apolo, Nietzsche aborda a figura de Dionisos como o símbolo dilecto do seu próprio modo de pensar filosófico e estético. Através de Dionisos o filósofo trágico representa o êxtase da embriaguez, o excesso, a criatividade, o movimento do eterno retorno, a paixão sexual e as forças naturais da vontade. Pretende Nietzsche compreender as forças que estão na origem dos símbolos e das obras de arte, presentando o dionisíaco e o apolíneo como paradigmas da relação dialéctica de luta e de união dos opostos. Procura dar respostas às confrontações entre as entidades polarizadas, tanto no plano natural, como no plano simbólico e metafísico. Deste modo, o conflito retrata a dissonância e o sofrimento tal como é abordado na obra trágica.
Teve Nietzsche a intuição de que na arte existe a comunicabilidade entre os diferentes níveis da realidade, descrevendo-os através da transposição da linguagem não figurativa (dionisíaca) para a linguagem figurativa (apolínea). Esses elementos diversos ora se unem, ora entram em litígio estimulando a produção das novas obras. De facto, o acto criador espelha e perpetua o conflito – Dionisos avança com a força desmedida, que Apolo equilibra através do saber configurador. A tragédia ática é precisamente o resultado dessa conciliação entre essas forças antagónicas. Diz Nietzsche em
O Nascimento da Tragédia: